PROCURADORIA – MENSAGEM Nº 064/2022

MENSAGEM Nº 064/2022

 

Santa Luzia, 17 de novembro de 2022

 

Excelentíssimo Senhor Presidente,

 

Dirijo-me a Vossa Excelência, com cordiais cumprimentos, para comunicar que, com base no § 1º do art. 53 e no inciso IV do caput do art. 71 da Lei Orgânica Municipal, decidi opor VETO integral à Proposição de Lei nº 179/2022, que “Dá nova denominação a logradouro público no Bairro Fecho – Estrada do Cemitério dos Escravos”, de autoria do Vereador Paulo Cabeção.

Verificados os pressupostos essenciais para as razões que adiante se expõem, temos o conflito ensejador da oposição por motivação de inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público, nos seguintes termos:

 

RAZÕES DO VETO

 

I – DO PLANEJAMENTO URBANÍSTICO

 

É sabido que a legislação sobre parcelamento do solo é vasta, com instrumentos normativos nas esferas federal, estadual e municipal. Tal arcabouço jurídico visa propiciar um adequado ordenamento territorial e um meio ambiente equilibrado, cuja proteção é inclusive constitucional, podendo-se citar como exemplos o inciso VIII do caput do art. 30, bem como os arts. 182 e 225 da Magna Carta.

Vale explicitar que o supracitado inciso VIII do caput do art. 30, dispondo sobre a competência dos Municípios, estabelece que a tais entes federativos cabe “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”, enquanto o art. 182 preceitua que “A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes”.

Nessa esteira, vê-se a importância de se cumprir estritamente os regramentos constitucionais atinentes à matéria em exame, o que significa afirmar que antes de se denominar uma via pública, há que se promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, devendo-se obedecer às diretrizes fixadas em lei, relativamente à política de desenvolvimento urbano, o que, por óbvio, inclui as normas urbanísticas aplicáveis.

Nesse contexto o autor Kiyoshi Harada[1] esclarece que:

 

“[…] a execução do plano urbanístico pressupõe planejamento prévio do desenvolvimento da cidade, em termos de distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e da área sob sua influência. Sem isso, o Poder Público não teria como corrigir ou evitar as naturais distorções que surgem com o crescimento da cidade, causando danos ao meio ambiente. O planejamento urbano abarca, pois, um campo bastante amplo, desde oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transportes e serviços públicos adequados, até a ordenação e controle do uso e ocupação do solo urbano.” (grifos acrescidos)

 

Para que a política urbana produza cidades sustentáveis e justas do ponto de vista econômico, ambiental e social, imprescindível que a atuação Estatal seja fruto de um planejamento que alie as melhores técnicas disponibilizadas pelo urbanismo às virtudes cívicas e legitimadoras do processo democrático participativo.

 

II – DOS REQUISITOS PARA O LOGRADOURO SER OFICIALIZADO

 

Verifica-se na Proposição de Lei nº 179/2022, que objetiva alterar a denominação do logradouro público no Bairro Fecho para “Estrada do Cemitério dos Escravos”, de autoria do Vereador Paulo Cabeção, a existência de óbice intransponível ao êxito da iniciativa, uma vez que, conforme informado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Habitação[2], a via em questão se trata de via de acesso existente e em USO PELO COSTUME, não sendo caracterizada como logradouro público.

Cediço que uma via passa a ser caracterizada como logradouro público quando é adquirida pelo Poder Executivo através de uma das formas possíveis: aprovação de loteamento ou desapropriação para fins de utilidade pública, nos termos do Decreto-Lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941, com justa indenização. Sendo assim, inviável a aprovação da Proposição de Lei nº 179/2022.

O que se percebe, portanto, é que o referido logradouro não reúne condições de ser oficializado, além do seu valor histórico adjacente aos povos escravizados que ali viveram e, por conseguinte, não é passível de receber denominação oficial distinta daquela utilizada pelo costume. Assim, é imperioso ressaltar que a atribuição de denominação pressupõe o prévio reconhecimento, pelo Poder Municipal, da natureza pública do logradouro, conforme dito alhures.

Observe-se que para a oficialização de vias e logradouros públicos, se faz premente obedecer às normas urbanísticas, nos termos do inciso XX do caput do art. 71 da Lei Orgânica do Município, senão veja-se:

 

“Art. 71.  Compete ao Prefeito, entre outras atribuições:

……………………………………………………………………………………………………………

XX – oficializar, obedecidas as normas urbanísticas aplicáveis, as vias e logradouros públicos, mediante denominação aprovada pela Câmara;

………………………………………………………………………………………………………….”  (grifos acrescidos)

 

E, nesse sentido, o sistema de denominação de vias ainda não incorporadas ao domínio público, constitui uma prática que, além de desconsiderar e desrespeitar a Lei Complementar n° 2.699, de 10 de outubro de 2006, Plano Diretor Municipal, afronta dispositivo legal insculpido tanto na Lei Orgânica de Santa Luzia quanto nas leis federal, estadual e municipal que estabelecem regras para parcelamento e desmembramento do solo urbano no Município.

 

III – DAS DESPESAS INDEVIDAS CAUSADAS PELA APROVAÇÃO DA LEI

 

Ademais, outro grave problema causado pela aprovação de lei denominando via pública ainda não incorporada ao domínio público é que o Município passa a realizar melhoramentos naquela via, a exemplo do asfaltamento, gerando um dispêndio irregular, em flagrante afronta às leis orçamentárias, em especial à Lei Complementar Federal n° 101, de 04 de maio de 2000, Lei de Responsabilidade Fiscal.

Isso porque a responsabilidade da gestão fiscal compreende a prevenção de riscos e a correção de desvios, com a finalidade de se manter o equilíbrio das contas públicas, nos termos do § 1º do art. 1º da Lei Complementar Federal nº 101, de 2000.

Soma-se a isso o fato de que o Município passa a ter a obrigação de indenizar moral e materialmente alguém que, porventura, caia em um buraco existente na via que veio a ser denominada pela lei, já que passa a ter responsabilidade sobre ela.

Além disso, o Poder Legislativo acaba por exigir do Poder Executivo a prestação de eventuais serviços públicos nessas áreas, gerando mais uma vez uma despesa indevida.

Desse modo, há efetiva ocorrência de invasão do Poder Legislativo na competência administrativa afeta ao Chefe do Poder Executivo, estando o ato parlamentar em conflito com o disposto no art. 2° da Constituição Federal, de 1988, que estabelece o Princípio da Separação dos Poderes.

Nesse ponto, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 302.803-1, já reconheceu:

 

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. LEI Nº 2.645/98 DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. ‘RUAS DE VILA’. RECONHECIMENTO COMO LOGRADOURO PÚBLICO. REPRESENTAÇÃO POR INCONSTITUCIONALIDADE EM FACE DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. OFENSA AO PRINCÍPIO DA INDEPENDÊNCIA E HARMONIA ENTRE OS PODERES. ART. 7º DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO. ART. 2º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. Ao determinar drásticas alterações na política urbanística do Município, convertendo áreas particulares em logradouros públicos e impondo ao Estado o dever de prestação de serviços públicos nessas áreas, a incrementar a despesa sem indicar a contrapartida orçamentária, usurpou o Legislativo municipal função administrativa atribuída ao Poder Executivo local. 2. Recurso conhecido e improvido.” (grifos acrescidos)

 

Destarte, não há como reconhecer legítima a prática de alteração da denominação de vias ainda não previamente incorporadas ao patrimônio público, eis que afronta todo o ordenamento jurídico que disciplina a matéria, em especial às leis orçamentárias e o princípio da separação de poderes, em flagrante inconstitucionalidade.

 

IV – DA LEI FEDERAL Nº 6.454, DE 24 DE OUTUBRO DE 1977

 

A Secretaria Municipal de Cultura e Turismo[3] se manifestou contrariamente a presente proposição, conforme doravante se reproduz o bosquejo de suas razões.

Destarte, para que se fale em “valorização positiva da história”, necessário esclarecer que a mudança parte de um conhecimento sobre o nome que se pretende trocar, ficando os motivos atrelados a um cabimento maior do que se propõe.

Ao contrário do explicitado, em nenhum momento a Proposição de Lei nº 179/2022 faz menção a quem foi Dâmaso José Diniz e Silva, não apontando os motivos pelos quais a troca pelo nome de um bem, que por si só já é dotado de proteção e valorização intrínseca ao instrumento de proteção do tombamento se aplica.

O apagamento da história e dos marcos antigos não é a solução para a sua reconstrução. Destarte, imperioso que o vereador proponente exponha os motivos pelos quais crê que o nome Dâmaso José Diniz e Silva – que se consubstancia em evidente remanescência da história da Sesmaria de Bicas – não é mais apropriado que um nome genérico de um local que por si já tem a valorização de um instrumento de proteção.

Nesse norte, segue trecho do ofício que foi enviado à Secretaria Municipal de Cultura e Turismo pelos descendentes do senhor Dâmaso José Diniz e Silva:

 

“O nome de Dâmaso está diretamente associado, ao longo do tempo, à existência do Cemitério dos Escravos da Fazenda das Bicas.

(…)Porque, quando da Lei Áurea, em 1888, ele, Dâmaso José Diniz e Silva, escolheu continuar mantendo, cuidando e respeitando a existência do cemitério dos Escravos da Fazenda de Bicas, por laços de afetividade e respeito cristão. Esta mesma decisão foi mantida por todos os seus filhos, netos e bisnetos que vieram a se tornar proprietários das terras remanescentes da fazenda. (…) Conforme o Dossiê de Tombamento do Cemitério dos Escravos da Fazenda das Bicas, página 11, o Cemitério da Fazenda das Bicas é o único registrado e tombado em Minas Gerais. É justo que a existência dele siga sempre atrelada ao nome de quem decidiu, trabalhou e deu exemplos em prol de sua preservação. (…)

 

Noutro vértice o art. 1° da Lei Federal n° 6.454, de 1977, preleciona requisito específico que deve ser observado quando se pretende denominar logradouros, obras serviços e monumentos públicos , in verbis:

 

“Art. 1o  É proibido, em todo o território nacional, atribuir nome de pessoa viva ou que tenha se notabilizado pela defesa ou exploração de mão de obra escrava, em qualquer modalidade, a bem público, de qualquer natureza, pertencente à União ou às pessoas jurídicas da administração indireta.” (grifos acrescidos)

 

V – DAS DISPOSIÇÕES FINAIS

 

Portanto, desconsiderados tais aspectos, será ilegal e inconstitucional o reconhecimento da via como pública, igualmente a nova denominação “Estrada do Cemitério dos Escravos”. Assim, denominar um logradouro dessa natureza, localizado em área que não se apresenta como regularizada, significa reconhecer seu caráter público, com as implicações decorrentes do ato.

Observa-se que a prática de denominação[4] de vias ainda não incorporadas ao domínio público contribui para a ocupação desordenada do Município, por certo devendo ser extirpada.

Assim, evitar-se-á a ocorrência de danos irreversíveis ao meio ambiente e prejuízos à sadia qualidade de vida e à função sócio-ambiental da propriedade, parâmetro constitucional inarredável a ser observado pelos Municípios que estão incumbidos de promover o adequado ordenamento territorial, bem como o controle de uso, parcelamento e ocupação do solo urbano.

Como exposto, pelo que foi conferido no âmbito da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Habitação e da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, a via de que trata esta Proposição de Lei não se enquadra entre logradouros oficializados, fato que impede seja ela denominada.

E, nesse sentido, a Administração Pública, por razão de coerência, não pode oficializar ou denominar logradouros, em inobservância a requisitos estabelecidos pelo próprio Poder Público.

A Secretaria Municipal[5] responsável pela matéria, após a publicação das leis denominando vias, passa a aceitá-las na apreciação de pedidos de aprovação e licença para edificações, já que elas são incorporadas de fato ao Plano Diretor.

Por todo o exposto, a propositura não é passível de receber a sanção do Executivo, por contrariar as disposições legais e constitucionais existentes sobre a matéria, mostrando-se, ainda, inoportuna, por contrariar o interesse público atinente ao ordenamento urbanístico, que deve ser feito em consonância com as normas e preceitos legais em vigor, restando configurados os motivos a justificar o veto, não se podendo conceber uma cidade organizada sem que haja respeito a suas leis, que são aprovadas pela própria Câmara Municipal.

Todo um esforço de planejamento[6], que demanda estudos e discussões, acaba sendo deixado de lado, numa prática ilegal, que se propõe unicamente a efetivar o direito de moradia, mas que acaba por contribuir sobremaneira para o estímulo à ocupação desordenada da cidade.

São essas, Senhor Presidente, as razões que me levam a opor veto total à Proposição de Lei nº 179/2022, devolvendo-a, em obediência ao § 4º do art. 53 da Lei Orgânica Municipal, ao necessário reexame dessa Egrégia Casa Legislativa.

 

 

LUIZ SÉRGIO FERREIRA COSTA

PREFEITO DO MUNICÍPIO DE SANTA LUZIA

 

[1] HARADA, Kiyoshi. Direito urbanístico: Estatuto da Cidade: Plano Diretor Estratégico. 1. ed. São Paulo: NDJ, 2004.
[2] Comunicação Interna n° 1753/2022/SEDUH
[3] Comunicação Interna nº 652/2022
[4] CARRIÇO DE OLIVERIA, Bruno. Denominação de vias não incorporadas ao patrimônio público no município de florianópolis e as implicações ambientais e urbanísticas dos procedimentos adotados pela câmara municipal. REVISTA DA ESMESC, v. 18, n. 24, 2011
[5] CARRIÇO DE OLIVERIA, Bruno. Denominação de vias não incorporadas ao patrimônio público no município de florianópolis e as implicações ambientais e urbanísticas dos procedimentos adotados pela câmara municipal. REVISTA DA ESMESC, v. 18, n. 24, 2011
[6] CARRIÇO DE OLIVERIA, Bruno. Denominação de vias não incorporadas ao patrimônio público no município de florianópolis e as implicações ambientais e urbanísticas dos procedimentos adotados pela câmara municipal. REVISTA DA ESMESC, v. 18, n. 24, 2011

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